Adolf von Harnack: O que é Cristianismo? - Parte 3

- Parte 3 - 

Quem quer fazer uma pesquisa sobre a essência do Cristianismo, deve estar consciente da obra gigantesca que quer realizar. O assunto surgiu porque houve uma ruptura, no século XIX, entre o dogma da igreja e a fé particular; muitas pessoas não podiam mais se identificar com a opinião do Cristianismo, que a igreja guardava na sua confissão e na sua liturgia. Muitas pessoas achavam que as igrejas incluíram muitas coisas nas suas confissões e cultos que não fazia parte da essência do Cristianismo. Pela influência da filosofia grega, das crenças pagãs, da ambição do poder político e muitos outros fatores, as igrejas introduziram muitas doutrinas e costumes que não tinham nada a ver com o verdadeiro Cristianismo. Por causa disso, surgiu a ideia de que era necessário purificar o Cristianismo desses elementos estranhos para que o caráter verdadeiro e puro aparecesse. A pesquisa sobre a essência do Cristianismo tem como pressuposto o fato de que existem muitas interpretações falsas que se manifestam nas igrejas estabelecidas. Então, de fato, a pergunta é: o que é o verdadeiro, puro, autêntico Cristianismo? O que é o Cristianismo original, genuíno?

Portanto, isso significa que todas as igrejas e todas as confissões são certas opiniões do Cristianismo. E se alguém não consegue se identificar com as opiniões eclesiásticas e quer apresentar a sua própria opinião, ele tem todo direito de fazer isso e pode até ser que ele tenha razão e que todas as igrejas se enganavam durante séculos. Homens como Harnack colocam a opinião deles ao lado daquela das diversas igrejas. Eles não querem substituir o dogma da igreja, mas colocam a sua interpretação do evangelho ao lado do dogma. 

                As igrejas sempre foram prudentes e se guardavam contra a mistura do essencial e do secundário no Cristianismo. Elas sempre tentaram realizar o verdadeiro, puro Cristianismo na sua confissão e liturgia, para que o pleno e puro Cristianismo se manifestasse. Se as igrejas conseguiram fazer isso, é uma outra pergunta. As igrejas da Reforma dizem que a Igreja Católica de Roma misturou o Cristianismo autêntico, em muitos sentidos, com elementos estranhos, porém elas mesmas não conseguiram oferecer uma essência abstrata do Cristianismo. A questão é, agora: quem tem razão? Quem consegue apresentar o evangelho autêntico, puro e pleno? A doutrina da Igreja ou a doutrina de Schleiermacher, Kant Ritschl ou Harnack?

                Existe uma grande diversidade de opiniões sobre a essência do Cristianismo, tanto as opiniões das diversas denominações, quanto também as opiniões de vários teólogos. Há muita confusão e discórdias, mas existem também pontos de acordo, que ajudam a continuar a conversa sobre a essência do Cristianismo.

                Em primeiro lugar, não existe nenhuma igreja e nenhuma comunidade, nenhum partido ou movimento, que identifique a sua própria opinião do Cristianismo completamente com o Cristianismo primitivo. Verdade é que cada um defende que a sua interpretação é a verdadeira e discute as opiniões de todos os outros que se desviam da sua verdadeira, porém cada um, incluindo cada igreja, faz uma distinção entre a verdade que apareceu em Cristo e o entendimento que nós recebemos dessa verdade. Talvez a igreja de Roma seja uma exceção, porque ela confessa a doutrina da infalibilidade e apresenta a doutrina dela como a única verdadeira e a absolutamente correta transmissão do evangelho. Porém, até ela faz uma distinção entre Cristo e o papa, que é o substituto dele, e entre a inspiração dos apóstolos e profetas e a assistência do Espírito Santo, que o chefe da igreja recebe. Em todo caso, não há ninguém que, principalmente, discorde da distinção entre a verdade da Escritura e o dogma da Igreja.

                Em segundo lugar, existe um acordo de que a procura pela essência do Cristianismo coincide com a procura pelo antigo, genuíno e verdadeiro Cristianismo. Existem diferenças de opiniões a respeito das fontes. Alguns contam somente com o Novo testamento, enquanto outros incluem também o Antigo Testamento; alguns só reconhecem os evangelhos sinópticos, outros aceitam todos os livros do Novo Testamento como fonte para o conhecimento do verdadeiro Cristianismo; alguns consideram que essas fontes só tem uma autoridade histórica, outros acham que têm também uma autoridade dogmática. Porém, no meio dessa diversidade, existe o ponto de acordo de que há uma só fonte e norma para o conhecimento do verdadeiro Cristianismo. Ninguém pode decidir por si mesmo o que é o verdadeiro Cristianismo, mas todos devem reconhecer que a história do antigo Cristianismo decide isso.

                Em terceiro lugar, existe ainda mais um ponto de concordância no fato de que as pessoas geralmente atribuem não somente uma autoridade meramente histórica ao Cristo Jesus, mas também uma autoridade dogmática. As diversas denominações e os diversos teólogos ainda valorizam o ser considerado como cristão e reconhecem a autoridade de Cristo. Cada um defende que tem a interpretação correta do ensino de Cristo. Essas diferenças não devem ser discutidas para criar mais distância, mas devem ser discutidas de tal forma que leve as pessoas para a plenitude da verdade e da vida em Cristo Jesus. A pesquisa para a essência do Cristianismo se transforma, logicamente, na pesquisa do Cristo. Quem é Cristo. O que ele fez e ensinou? O que você pensa do Cristo: essa é a pergunta crucial na religião e teologia.

                A igreja antiga confessou o Cristo como o Verbo incarnado, o único Mediador entre Deus e os homens. A Crítica Histórica do século XIX negou isso e causou muita confusão questionando as fontes do Novo Testamento, mas essa onda passou e até Harnack admite que a antiga tradição está sendo creditada de novo. A pesquisa histórica imparcial levará a opinião de que Jesus, de acordo com o seu próprio testemunho e de acordo com a fé da congregação, desde o início se considerou o Messias. Os Judeus não admitem isso, e por causa disso não é surpreendente que os estudiosos judaicos elogiavam o livro de Harnack, porque eles entenderam bem que, SE a doutrina do Logos, a Trinidade, o Pecado Original, a Predestinação etc, são elementos estranhos e impuros e que o verdadeiro Cristianismo se limita às ideias de Deus Pai e à alma do homem, o antigo Cristianismo de fato é igual ao Judaísmo. Se o Judaísmo renuncia ao Talmude e o Cristianismo à sua Cristologia, os dois podem se unir. O livro de Harnack favorece essa ideia, porque ignora que o Cristo é essencial para o Cristianismo!

                     

O livro de Harnack foi, de certa forma, já uma tentativa de criar uma teologia do Novo Testamento que estivesse desligada da História do Dogma, que ele escreveu nos anos anteriores. O livro foi um estímulo para continuar nessa direção, e de certa forma podemos dizer que um dos efeitos desse livro foi a criação de vários tipos de Teologias do Novo Testamento. A publicação das Teologias do Novo Testamento é uma novidade no estudo do NT que caracteriza o século XX. O texto de Jakob van Bruggen, que incluí nessa resenha, explica isso e traz informações complementares a respeito do desenvolvimento de ideias no século XIX antes da publicação do livro de Harnack.

Van Bruggen analisa a onda das teologias do NT que foram publicadas nas últimas décadas; cada um defende a sua interpretação do evangelho e apresenta o resultado na sua teologia, que não tem nada a ver com o dogma da igreja, mas que se apresenta como o dogma autêntico que não foi afetado pelos elementos históricos e estranhos.


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