Adolf von Harnack: O que é Cristianismo? - Parte 4

 - Parte 4 -

Jacob van Bruggen sobre a teologia do NT.[1]

    Um fenômeno relativamente novo é a publicação de Manuais de “Teologia Bíblica”, que se dividem entre a “Teologia do Antigo Testamento” e a “Teologia do Novo Testamento”. Estes manuais são, geralmente, livros volumosos, e muitas vezes o produto final da carreira de um professor do Novo ou Antigo Testamento. Por causa disso, existem várias Teologias Bíblicas que nunca foram concluídas (como, por exemplo, a de J. Jeremias. Esse autor faleceu antes de terminar a obra principal da sua vida). Existem também estudos amplos sobre este fenômeno da teologia bíblica em si (veja H.J. Kraus, Die Biblische Theologie, Ihre Geschichte und Problematik (1970)).

    Para entender essa “onda” de teologias bíblicas, nós devemos voltar para o final do século XVIII. Em 1787, J. Ph. Gabler apresentou uma palestra sobre a distinção entre a teologia bíblica e a teologia sistemática. Ele fez uma defesa em favor de uma teologia que esteja desligada dos princípios dogmáticos e confessionais, para que possamos observar os conceitos teológicos dentro das escrituras bíblicas, puramente, no fundamento histórico. Na teologia sistemática a bíblia é usada em favor do dogma, porém a teologia bíblica se concentra no crescimento histórico da teologia dentro da Bíblia. Gabler não teria feito a sua palestra se não tivesse a convicção de que existe um abismo entre o dogma da igreja e a crença dos autores primários da Bíblia. A visão crítica a respeito do Cânon da Bíblia exigiu também uma própria teologia, em que a Bíblia não mais é observada como a única revelação de Deus, mas sendo uma compilação de diversos documentos da fé das pessoas do passado.

    Inicialmente a teologia do Novo Testamento se limitou à inventariação dos pensamentos teológicos de cada livro da Bíblia ou de cada apóstolo que escreveu um livro ou epístola. Porém, quando o estudo crítico da introdução ao Novo Testamento se desenvolveu mais e mais, o escopo da teologia do Novo Testamento mudou também no decurso do século XIX. Não faz muito sentido organizar a teologia de cada livro se esses livros são postos em desordem e desdobrados em fontes ou de acordo com a sua autenticidade. O escopo da teologia do Novo Testamento se adaptou por causa das mudanças no estudo da introdução ao Novo Testamento, e se concentrou na pesquisa dos desenvolvimentos teológicos que acompanharam o crescimento do Novo Testamento; e também para verificar qual núcleo nessa evolução é o mais essencial e o mais marcante para os tempos posteriores.

    Um exemplo desse desenvolvimento é a famosa obra de A. von Harnack, Das Wesen des Christentums (1900), Von Harnack considerou como algo essencial e marcante do Cristianismo a pregação de Jesus sobre o amor do Reino de Deus e o valor da alma humana. De certa forma, ele encontrou a confissão da teologia liberal do século XIX no coração do Novo Testamento, e depois disso ele demonstrou como esse evangelho foi elaborado e incluído na história. 

    Um exemplo da primeira linha de raciocínio é a grande Teologia do Novo Testamento de Rudolf Bultmann (Tübingen 1965, 5ª edição). Essa obra parece, em certo sentido, com o “Kyrios Christos” de Bousset. Ele descreveu a pregação de Jesus, o “kerugma” da congregação primitiva, o “kerugma” da congregação helenística, que existia antes e ao lado de Paulo, a teologia de Paulo e a de João, como também o desenvolvimento na direção da Igreja antiga. Enquanto Bousset se focalizou no aspecto histórico (a pregação simples de Jesus), Bultmann se dedicou a demonstrar o conteúdo teológico de cada fase do desenvolvimento. Cada vez de novo ele defende que existe um certo “Selbstverständnis”, que de certa forma está vibrando nos diversos conceitos teológicos. A essência que passa por tudo é o auto entendimento do homem neste mundo. Com ajuda de termos do jovem Heidegger, Bultmann descreve o conteúdo teológico nas diversas formas do Novo Testamento.

    Parcialmente oposto a Bultmann, o famoso estudioso do Novo Testamento, Oscar Cullmann, defendeu manter a história da salvação na teologia do Novo Testamento; ele não quer que essa se dissolva num auto entendimento a-histórico. Ele observou como essencial dentro dos conceitos de pensamento do Novo Testamento a tensão escatológica, que o homem experimenta enquanto ele vive entre o “já” e o “ainda não” da salvação. A dialética dessa salvação que já chegou e a perfeição que ainda não chegou é a área de tensão em que todos os autores primários estavam atuando.

    A maneira pela qual a teologia do Novo Testamento é feita revela, muitas vezes claramente, que ela é a resultante de pressuposições ou conclusões na área do cânon, do mundo do Novo Testamento e das questões introdutórias. Na teologia do Novo Testamento se faz o balanço teológico da crítica da Bíblia, e o resultado é um crédito positivo ou um débito negativo.

    É um pouco estranho que essa disciplina tenha ficado com o nome “teologia”. A descrição histórica das ideias sobre Deus não é automaticamente uma teologia! O nome teologia pressupõe que Deus pode ser conhecido, especialmente pela revelação que Ele ofereceu da sua existência e essência. Se fosse aceito este pressuposto, um outro tipo de estudo seria feito. A primeira coisa ia ser que as pessoas aceitassem de novo o Antigo e Novo Testamento como unidade, e o resultado seria que tal “teologia bíblica” voltaria para a teologia sistemática, como o filho pródigo voltou para a casa do pai.

    Hoje em dia a disciplina da teologia do Novo Testamento generalizou-se de tal forma que até aqueles que rejeitam os princípios dela se esforçam para apresentar um tipo de teologia do Novo Testamento, que é fiel e serve como alternativa. Exemplos desse tipo de trabalho são as obras de H.N. Ridderbos, G.E. Ladd, Donald Guthrie e L. Morris. A maioria dessas obras se dedica a reproduzir e refletir as teorias dos outros. Até que ponto será possível manter a forma (uma teologia do Novo Testamento) com outros pontos de partida, e até que ponto essa forma -  consciente ou inconscientemente - atrapalha ou desvia, é um ponto para discussão.  



[1] Prof. Dr. Jakob van Bruggen, De Kompas van het Christendom (Kok, Kampen 2002) p. 206 e seguintes.

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